11/07/2011

5 horas de viagem com uma travesti, que viajou sozinha de carona por vários estados brasileiros

O último feriado havia passado, e todo o meu plano de ir pedindo carona de Belo Horizonte ao Rio de Janeiro foi por água abaixo graças a umas provas que tive que fazer. A última vez que eu havia viajado foi no carnaval, uns cinco meses(!) atrás.

Postei no Facebook uma mensagem perguntando se alguém teria sugestões de outro lugar onde ir em vez do Rio, algum lugar em Minas. Obtive umas cinquenta respostas, mas no fim das contas acabei decidindo ir pra minha cidade natal no interior de Minas, Raul Soares! Como se já não fosse entediante o suficiente, desisti de ir de carona porque já estava ficando muito tarde.

A travesti da bagagem rosa

Até que eu vi êla, uma travesti guardando sua mala pra entrar no ônibus. Com seus super seios turbinados, um cabelão lisíssimo até a cintura, as sombrancelhas bem fortes feitas de lápis, bagagem rosa ultra chegay, e um vestido azul (bem elegante!) curtíssimo. Sozinha e imponente, daquelas que jogam na cara que é um homem vestido de mulher, e não está fazendo questão alguma de passar impercebível como se fosse uma mulher comum.

É, eu admiro as travestis. Poucas pessoas são fortes o suficiente pra enfrentar o que elas enfrentam todo minuto de vida até nos dias de hoje em pleno 2011. E eu digo "enfrentar" por quê sempre, em qualquer lugar que elas vão, há aqueles que passam de longe e gritam querendo provocá-las. Gritam coisas sobre seus corpos ou suas aparências. E há também aqueles que passam as desejando de forma bem discreta, um desejo que só elas sutilmente percebem (e como elas percebem!).

Êla, a travesti que tava guardando sua bagagem (não posso usar a palavra "mala" nesse contexto pra evitar ambiguidade) se chama Cátia. Cresceu na mesma cidade que eu, estudou na mesma escola que eu, teve os mesmos colegas de turma que eu, e inclusive me bateu algum dia depois da aula quando éramos criança.

Depois que crescemos, eu morei em várias outras cidades e quase nunca voltei à nossa cidade natal. Então raríssimas vezes nos vimos, mas sempre que isso acontecia eu fazia questão de cumprimentá-la, como uma tentativa de puxar conversa. Numas dessas poucas conversas acabei descobrindo segredos bem reveladores sobre pessoas da nossa cidade que geralmente têm certas atitudes homofóbicas. Descobri segredos até de familiares próximos meus, daqueles típicos "machos" da família. Mas não quero entrar nesses detalhes.

Um fato inusitado é que em homenagem à essa travesti (a única da minha cidade natal), certa vez eu ganhei um filhotinho de gato e dei seu nome a ele. Sim, meu gato se chamava Cátia. Eu morava numa república com 12 homens heteros em Viçosa (também interior de Minas), e cheguei a ouvir um dos caras da república dizer que não aceitaria que eu desse um nome feminino a um gato "macho". Terminei aquela discussão com um curto e grosso "Quem é o dono?".

Quando Cátia entrou no ônibus que nos levaria rumo à Raul Soares, todos olhavam pra ela. Um cara havia assentado em seu lugar (assento marcado na passagem), o que a levou a pedir a ele pra dar licença. Os amigos do cara, que estavam na poltrona de trás, estavam rindo e fazendo altas piadas, durante o tempo que ele se mudava para a poltrona ao lado. Sabe-se lá se estavam rindo se divertindo de algo aleatório, ou se estavam fazendo piada contra o cara porque ele iria viajar assentado ao lado dela. Só sei que enquanto isso eu estava lá atrás empolgado gritando o nome dela. "Cátia! Tem um assento livre aqui, vem pra cá sentar comigo!". Mas ela preferiu ir no seu assento reservado mesmo, talvez porque era um assento à janela, ou talvez porque esse cara que estava ao seu lado era um gato mesmo. rsrs

Passou mais ou menos uma hora, e a merda do engarrafamento não havia nos deixado sequer sair da região metropolitana de Belo Horizonte ainda. Eu já tava quase pulando pela janela, me roendo inquieto, entediado, sem nem sequer ter meu celular pra me entreter. Acabei indo até a Cátia e a convidando novamente a assentar-se comigo. Ela aceitou.

Ao assentarmos, uma garotinha que estava no banco à nossa frente pulou em pé no banco e ficou perguntando pra sua mãe:

- Ele é o amor dela? - apontando pra gente.
Cátia:
- Não, ele é só meu amigo..
E a menina continuava perguntando. Até que a mãe dela respondeu:
- Ela é amiga dele, não é o amor não!

Fofura a falta de certos preconceitos na cabeça das crianças.

O tempo foi passando e eu e Cátia fomos conversando. Ela me contou sobre seu mundo, seu dia-a-dia. Sobre ela gostar muito de viajar, e sobre durante uma fase que ela viajou bastante pedindo carona(!) por vários estados brasileiros. Ela além de sair sem grana, não tinha Couchsurfers ou amigos de internet, nem amigos de amigos que pudessem hospedá-la. Ela se virava por aí, e ia conhecendo vários lugares sozinha! Acredito que por isso a gente pôde falar de tantos assuntos variados, e sobre os "mundos" tão diferentes nos quais vivemos.

Já escutei histórias de pessoas que viajam assim e se prostituem. Garotos gays muito frequentemente assumem uma postura mais afeminada e muitas vezes se travestem não por se identificarem com aquele gênero ou estilo de vestir, mas sim pelo fato de que assim eles começam a ser mais procurados por homens e clientes em geral.

Muitas dessas pessoas que se prostituem, quando não gostam de um cliente ou outro, chegam a furtar dinheiro de suas carteiras (sem que o cliente se dê conta, claro), e fazem isso porque acharam que aquele cliente "merece". As formas sutis de esconderem o que furtaram (dinheiro ou o que seja, caso furtem algo diferente) varia bastante. Algumas escondem as notas furtadas em meio ao cabelo preso. Algumas conseguem escondê-las até entre o pé e o chinelo, caso estejam calçando chinelos(!).

A vida de pessoas que se prostituem nas ruas geralmente é bem incerta. Elas passam a noite em ruas ou postos de gasolina à beira da estrada esperando aparecer algum cliente. E eu suponho que sempre há clientes, caso contrário não seria tão comum encontrar pessoas nessa profissão por anos. Algumas as vezes furtam, às vezes enfrentam clientes tão hostis e perigosos quanto elas mesmas (não todas) podem ser. Elas aprendem a serem hostis pra se defender.

Quando eu conto pra pessoas que se prostituem e viajam, assim como a Cátia, que eu também já viajei assim sem grana, me hospedei na casa de pessoas que não conhecia, e etc, elas logo me perguntam se eu nunca troquei sexo por uma carona, por uma hospedagem ou por um prato de comida. Não, eu nunca. Elas dificilmente acreditam que possa existir tanta gentileza no mundo.

Nosso ônibus parou em um posto desses grandões de beira de estrada pras pessoas comerem. Cátia me disse enquanto fumava seu cigarro:

- Claro que eu gosto de chamar atenção. Mas não é sempre. Agora por exemplo, eu sou uma pessoa qualquer viajando, mas as pessoas em volta só olham pra mim.

Propuz que viajássemos pedindo carona juntos pra algum lugar qualquer dia. Acho que ela gostou da ideia.

Enquanto todo mundo dormia no ônibus o resto da viagem, nós dois lá atrás não parávamos de falar. Chegamos a Raul Soares e nos despedimos.

Raul Soares é uma cidade pequena, então no dia seguinte acabamos nos encontrando. Estávamos numa festa à noite, eu usava pó compacto e base no rosto, lápis e sombra nos olhos, enquanto vestia roupas masculinas mesmo. Foi mais uma homenagem que fiz à ela, ou uma inspiração vinda dela.




De Belo Horizonte à Raul Soares foram 5 horas de viagem que fiz junto com Cátia naquele ônibus da capital até nossa cidade natal. 5 horas de bastante conversa com aquela pessoa que a mim me pareceu tão igual à cada um daqueles que desde criança eu escutei (e escuto) fazendo piadas com seu nome lá na nossa cidade de interior. Uma pessoa tão igual a mim que sou admirado por aquelas pessoas da nossa cidade de interior pelo fato de eu ter conhecido tantos lugares diferentes só na cara e na coragem.

A diferença entre eu e Cátia, no mérito (viagem, etc) que faz essas pessoas da nossa cidade natal me admirarem, provavelmente está no fato de que ela viajou e viveu "aventuras" muito mais intensas do que as minhas. Mas provavelmente ninguém jamais verá isso.

2 comments :

  1. Leo,mas vc nao escreveu ninhuma historia della! Tava leendo ate final e nao escreveu nada :/ So sobre encontro - quase 2-3 paginas :DDD

    ReplyDelete
    Replies
    1. É verdade, Zu!
      Tive que editar o texto pra tentar diminuí-lo e o reescrevi pra tentar melhorar o foco do que era dito. Nunca fui muito bom em escrever, mas agora esse texto em si deve estar melhorzinho :)

      Delete